por Bráulio Santiago Cerqueira
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados deliberou pela admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 32/2020, a reforma administrativa do governo Bolsonaro, que agora terá o mérito discutido em Comissão Especial criada para esse fim.
Na CCJC, que se debruça sobre a constitucionalidade da matéria, acertadamente saíram os novos princípios da Administração Pública, dentre eles o da Subsidiariedade, que desresponsabiliza o Estado da prestação de serviços à população, bem como caiu a autorização do presidente da República em extinguir, por Decreto, entidades autárquicas e fundacionais, como universidades, um alívio diante dos embates travados pelo governo atual com a ciência, a pesquisa e a educação pública.
Não obstante, persistem na PEC outras inconstitucionalidades e elevada insegurança jurídica, a exemplo: i)da falta de previsão de enquadramento nas futuras estruturas de cargos e carreiras dos 12 milhões de servidores atuais, que com a extinção do Regime Jurídico Único passarão a integrar um “Regime Jurídico Específico” (art. 2º da PEC); ii) da possiblidade de redução de jornada e salários, exceto para os “cargos típicos de Estado” (art. 37, XXIII, “e” da Constituição Federal – CF), o que contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF); iii) da permissão para o desligamento do serviço público por decisão colegiada não transitada em julgado, tanto dos atuais servidores, que permanecem com estabilidade requalificada desta forma, quanto dos novos ocupantes de “cargos típicos de Estado”, o único novo vínculo cujo ingresso prevê estabilidade (art. 41, § 1º, I – CF); iv) da possibilidade de afastar por “motivação político-partidária” os ocupantes de “cargos de Liderança e Assessoramento”, a nova denominação dos comissionados (art. 41-A, parágrafo único – CF); v) do prejuízo à impessoalidade do recrutamento pelo novo “vínculo de Experiência”, uma fase prática do concurso público onde os candidatos/servidores (?) estarão sujeitos a avaliadores obrigados a classifica-los para desliga-los (art. 39-A, I – CF); vi) da ausência de menção a qualquer controle sobre os instrumentos, ampliados, de cooperação do Estado com o setor privado para a prestação de serviços públicos (art. 37-A – CF).
A discussão do mérito da reforma, a julgar pela manifestação da maioria dos deputados apoiadores da proposta na CCJC, em linha com o discurso oficial e de “mercado”, permanece marcada pela desinformação e chavões ideológicos.
Seriam três seus objetivos declarados: conter as despesas obrigatórias com salários para abrir espaço ao investimento público; modernizar a Administração Pública; e acabar com remunerações e benefícios desproporcionais.
Em relação ao primeiro objetivo, a própria Exposição de Motivos esclarece que “a Proposta de Emenda à Constituição ora apresentada não acarreta impacto orçamentário-financeiro. No médio e no longo prazos, inclusive, poderá resultar na redução dos gastos obrigatórios, possibilitando incremento nas taxas de investimento público no país”. Isto, a ausência de impacto fiscal ou mesmo de estimativas a respeito, ocorre por duas razões: a primeira é que a política remuneratória do governo Bolsonaro já está definida em Lei e na própria Constituição, consistindo na valorização dos soldos militares e no congelamento nominal (compressão real) dos salários civis (Lei no 13.954/2019 de reestruturação das Forças Armadas, Lei Complementar no 173/2020 que congela salários de servidores até o fim de 2021, Emenda Constitucional no 109 que antecipa cortes previstos no teto de gastos podendo congelar concursos e salários até 2036); a segunda é que o próprio texto da PEC remete à Lei Complementar as definições sobre “política remuneratória e de benefícios” (art. 39, II – CF).
Já o comportamento do investimento federal pós-2014, de 1,3% do PIB para 0,8% em 2019, em nada se relaciona à despesa com pessoal civil, que vem caindo em termos reais e segue estável em percentual do PIB: 1,8% do PIB em 2014 para os ativos civis, e os mesmos 1,8% em 2020 (STN/Resultado do Tesouro Nacional). A queda do investimento federal remete a outros fatores, como a adoção de uma agenda econômica refratária ao planejamento estatal, e a adoção de regras fiscais mal desenhadas, a exemplo teto de gastos. Aliás, sua suspensão no ano passado pelo orçamento de guerra levou o investimento federal a 1,4% do PIB (STN/Resultado do Tesouro Nacional).
Quanto à modernização do Estado, em verdade o projeto se restringe à gestão de recursos humanos (RH), deixando de lado a estrutura da máquina pública, insumos, ferramentas de gestão, governo digital e as próprias entregas de bens e serviços à população.
Enquanto reforma do RH, a orientação da PEC 32/2020 é privatista e patrimonialista. Chama “modernização” a precarização das relações de trabalho no serviço público. Dentre as alterações previstas, destaca-se: i) a já salientada extinção do Regime Jurídico Único com a criação de 5 vínculos diferentes na administração, apenas um deles com estabilidade para os novos servidores (art. 39-A – CF); ii) a ampliação do escopo das contratações temporárias, inclusive em atividades sazonais e para lidar com um indefinível “acúmulo transitório de serviço” (art. 39-A, § 2º – CF); iii) a facilitação de arranjos sem controle na cooperação entre governo e particulares na prestação de serviços públicos (art. 37-A – CF); iv) o aumento do quantitativo e o livre preenchimento dos “cargos de Liderança e Assessoramento”, que passam a abrigar não apenas atribuições estratégicas e gerenciais, como os equivalentes de hoje, mas também técnicas (Exposição de Motivos da PEC); v) a revogação do § 2º do art. 39 da CF que determina a manutenção de escolas de governo pelos entes federados; vi) a atribuição ao presidente da República do poder de extinguir, sem discussão e autorização prévia do Congresso, cargos e Ministérios (art. 84, VI – CF).
Assim, a proposta de reforma administrativa institucionaliza o bico no Estado, aponta para a privatização desregulada de serviços públicos, amplia a ingerência política na gestão, e “premia” o grosso das categorias de servidores à frente do combate à pandemia com o fim da estabilidade. Esta última, vale lembrar, instrumento de proteção do cargo público e da sociedade contra o arbítrio do poder político ou privado.
Não por outras razões, conclui a Nota Técnica 69/2021 da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal (p. 40, grifos do texto):
“…a PEC 32/2020 apresenta diversos efeitos com impactos fiscais adversos, tais como aumento da corrupção, facilitação da captura do Estado por agentes privados e redução da eficiência do setor público em virtude da desestruturação das organizações. Por sua vez, os efeitos previstos de redução de despesas são limitados, especialmente no caso da União. Assim, estimamos que a PEC 32/2020, de forma agregada, deverá piorar a situação fiscal da União, seja por aumento das despesas ou por redução das receitas”.
Ainda no que tange à gestão, importa desfazer outra confusão bastante comum: a PEC 32/2020 não institui, não disciplina nem regulamenta a avaliação de desempenho do servidor, e os motivos são simples: já existe avaliação de desempenho no serviço público, assim como já há previsão constitucional, desde 1998, para a regulamentação do desligamento do serviço público por insuficiência de desempenho (art. 41, § 1º – CF). Ou seja, o aperfeiçoamento da avaliação de desempenho independe de reforma constitucional.
Por fim, é curioso que o governo que acabou de estabelecer duplo teto remuneratório para militares da reserva e civis aposentados ocupantes de cargos em comissão (Portaria 4.975/21 ME) fale em fim de “privilégios” com a reforma administrativa. Enquanto mais de 90% do funcionalismo se concentra no Poder Executivo com média salarial de R$ 4.200,00, a PEC 32/2020 não se aplica aos agentes públicos com regimes jurídicos diferenciados. Por sua vez, o novo inciso XXIII do art. 37 da CF proposto na reforma, que proíbe aposentadoria como modalidade de punição, licença prêmio, anuênios e quinquênios etc., disciplina benefícios que não existem há mais de década no Executivo Federal.
Por essas razões, convém que o necessário amadurecimento do debate na Comissão Especial resulte na rejeição da PEC 32/2020. Alternativas na direção republicana e democrática há, como em Rumo ao Estado Necessário (Frente Parlamentar Servir Brasil e FONACATE, 2021). Reflexão crítica e informação qualificada mostram ser possível retomar a agenda de regulamentações, já prevista na Constituição, de melhoria de desempenho, produtividade e entregas da administração pública, desde que o desenvolvimento em suas múltiplas dimensões não seja reduzido a chavões que estigmatizam o Estado, o serviço público e a própria nação.
* Bráulio Santiago Cerqueira é mestre em Economia. Auditor Federal de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Presidente do UNACON Sindical (Sindicato Nacional dos Auditores e Técnicos Federais de Finanças e Controle).
Fonte: Jota Opinião & Análise