De modo a clarificar e tornar compreensível o texto da PEC 32, que propõe profunda reforma administrativa nos quadros da Administração Pública e em sua gestão, faço essa análise apurada, considerando não apenas o texto proposto, mas as implicações e questionamentos por trás dos dispositivos.
Apresentação e considerações iniciais:
De antemão, ressalto como extremamente danosa a proposta quanto à qualidade na prestação dos serviços públicos, uma vez que defende um precário vínculo entre os agentes públicos e o Estado, abrindo margem para práticas patrimoniais, clientelistas e de rent seeking – a usurpação da coisa pública por particulares.
Não bastasse, quanto à técnica legislativa, a leitura do texto e de seus dispositivos é dificultosa, trazendo, em alguns casos, dificuldade de interpretação. Ao que consta, de acordo com a leitura possível da PEC 32, por mais que a equipe do governo afirme ser uma reforma de cunho modernizador, visando a racionalidade e a eficiência da máquina pública, ela não aponta meios e no que tange aos aspectos de gestão, deixa reserva posterior à Lei Complementar em assuntos importantes, como gestão de pessoas no setor público, critérios para ocupação de cargos de liderança e assessoramento, organização da força de trabalho, promoção e progressão funcional, desenvolvimento e capacitação de servidores. Quanto a essas disposições, por que não tratar por meio de Lei Ordinária? Para que se tenha uma ideia, a Lei Complementar referente à avaliação funcional de desempenho prevista na última reforma de 1998 até hoje não foi editada.
Quanto aos princípios, de maneira prolixa e redundante o rol é ampliado, gerando uma série de questionamentos quanto à sua interpretação e ao seu alcance. No que tange às vedações, parte acertada em sua maioria, a Emenda apenas regulamenta o que em âmbito federal já não existe e que de fato são traços de uma gestão patrimonial e protecionista, que onera o Estado sem justificativa plausível, a exemplo de progressões automáticas, incorporação de retribuições de cargos e funções, licença-prêmio, entre outros.
Além deste texto, pretendo iniciar e encabeçar uma série de ações com o objetivo de conscientizar e informar não só os servidores atuais e potenciais, mas toda a sociedade. Não se pode vender o argumento de que o servidor público seja parasita ou o causador da crise econômico-financeira pela qual o País passa. Não admito que o servidor médio seja vilanizado de modo a justificar o ímpeto reformista e liberal do governo atual.
Os princípios expressos da Constituição Federal de 1988
A equipe de reforma se encarregou de incrementar o rol de princípios expressos sem tirar nenhum existente no clássico mnemônico LIMPE. A meu ver, em alguns casos há redundância, mesmo porque há diversos preceitos doutrinários ou mesmo infraconstitucionais que dão alcance ao que se defende. Além disso, vejo algumas impropriedades semânticas, podendo ensejar interpretações que beiram entendimentos antijurídicos. Por fim, de nada adianta ampliar princípios sem construir marcos regulatórios que os façam ter eficácia e alcance. Por exemplo, a despeito de a emenda constitucional nº 19 de 1998 ter instituído o princípio da eficiência, é nítida sua não aplicação, seja quanto a simplificação de procedimentos e amarras burocráticas, seja pelo baixo investimento em sistemas informatizados para as áreas de gestão de órgãos e entidades da Administração Pública em suas diversas esferas e Poderes.
Vejamos um a um dos princípios, de acordo com a nova redação proposta pela Emenda:
Imparcialidade: Parece redundante falar em imparcialidade, pois o princípio da impessoalidade o abarca. Quanto age o agente público, o faz em nome do Estado, em favor da sociedade, não se afastando da finalidade pública. Se é impessoal, não tomará parte, afastando qualquer parcialidade. Por isso mesmo deve ser garantida a atuação técnica e profissional, longe de atendimento de ordens hierárquicas de cunho político – razão pela qual parece contraditória a posição de criar tal princípio, mas defender o fim da estabilidade para servidores que não estejam tipificados em Carreiras Típicas de Estado.
Transparência: A meu ver, conforme ensino em minhas aulas, a transparência se coaduna com a publicidade e com ela não se confunde, pois amplia seu escopo. Por mais que tenham optado por especificar de maneira expressa, já era considerado um princípio infraconstitucional, clarificado pela Lei de Responsabilidade Fiscal e, mais recentemente, pela Lei de Acesso à informação. Creio que transparência vai além da publicidade, pois implica noção de clareza e da prestação de informações completas, precisas e inteligíveis à sociedade, o que não se alcança pela simples publicação de atos. Em todos os casos, em respeito a princípios como o da impessoalidade e da finalidade pública, veda-se a promoção e autopropaganda de agentes públicos. Se a transparência é um princípio da reforma, por que o governo divulgou as despesas obrigatórias de caráter continuado, na ordem de 93,7% do orçamento, como se fossem só relacionadas com servidores ativos? Elas incluem juros da dívida e gastos com aposentados e pensionistas, o que não foi informado à sociedade, que é leiga nestes assuntos. Parece que o intuito é mesmo vilanizar servidores.
Inovação: Creio que haja necessidade de regramento e maior explicação acerca do que pretende o poder constituinte derivado reformador. Inovar não se trata apenas de aplicar recursos tecnológicos de última geração, mas de buscar soluções que escapem do senso comum e das tradicionais amarras burocráticas. Dado o caráter nitidamente liberal do governo, deve estar também relacionado à busca de parcerias na esfera privada. Segundo ditos do atual Ministro da Economia, busca-se a modernização da máquina, com investimentos em tecnologia. O que tenho visto em anos de serviço público, a despeito da existência do princípio da eficiência, são modelos de gestão obsoletos, sem investimentos qualificados em estrutura tecnológica, especialmente no que se refere à área de gestão, destacadamente na área de gestão de pessoas.
Responsabilidade: A meu ver, por este princípio entende-se o dever de prestar contas, obedecendo à finalidade pública em todos os casos, ensejando a responsabilização do agente que age com irresponsabilidade, prejudicando o patrimônio público ou dando causa a prejuízos ao erário, o que já se estabelece por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal e de outros institutos legais. Contudo, parece que o poder constituinte derivado reformador decidiu apresentar de maneira expressa. Segundo justificativa reformista, trata-se de direito fundamental de todos exigirem que os agentes estatais atuem de modo efetivamente responsável.
Unidade: Não resta claro na proposta o significado e alcance do termo “unidade” enquanto princípio da Administração Pública. Como bem se sabe, a organização político-administrativa atribui para cada ente político certas competências, salientando que entre eles não há liame hierárquico ou vertical, mas de coordenação. Mesmo quanto aos Poderes constituídos, são independentes e harmônicos entre si, exercendo funções típicas e atípicas, mas apartados e com atribuições próprias. Vejo como inadequado e antijurídico falar em unidade e, caso haja extrema necessidade de manutenção de algo que dê sentido ao que a Reforma espera, que adotem nomenclatura menos confusa. Assim afirma a PEC: “à luz da repartição de competências, mas todos esses níveis, estruturas e funções devem atuar guiados pelos mesmos fundamentos, com as mesmas finalidades e pelos mesmos princípios dispostos na Constituição, formando um todo harmônico e coerente”. Sugiro algo como “unidade de direção”.
Coordenação: Refere-se a princípio infraconstitucional existente desde o Decreto-Lei 200 de 1967, que estabelece princípios de racionalidade administrativa para a Administração Pública Federal: planejamento, delegação de competências, descentralização, coordenação e controle. Na verdade, coordenar consiste em conjugar ações, atos e interesses para a obtenção de resultados orquestrados entre as diversas esferas de atuação estatal, incluindo ainda os entes privados, com ou sem fins lucrativos, em colaboração com o setor público. Em síntese, a Administração Pública deve articular e coordenar seus diversos stakeholders, a exemplo dos entes federativos, da iniciativa privada, das organizações sem fins lucrativos, entre outros, com ou sem vínculo hierárquico.
Boa Governança Pública: Princípio que pressupõe a capacidade de ação do estado, implementando seus planos, ações e políticas pública, atingindo resultados com transparência, prestação de contas, respeito a normas e condições legais, com uso adequado e racional dos recursos, sob a égide da eficiência e, sobretudo, da efetividade das ações do Estado, que implica em necessário valor social. Assim define o constituinte: No conceito de uma boa governança pública é possível sublinhar a posição de destaque do cidadão, como centro de toda a atuação administrativa, incluindo o direito de ser ouvido antes de qualquer decisão administrativa que o afete desfavoravelmente, de ter acesso aos processos que tratem de seus interesses, bem como a obrigação, por parte da Administração, de fundamentar suas decisões, que devem ser imparciais e proferidas num prazo razoável. Quanto aos ditos reformistas, preciso fazer considerações: como o cidadão é o centro da tomada de decisão e precisa ser ouvido se uma reforma de impacto imenso sobre a vida da sociedade e dos servidores públicos está sendo imposta sem que os interessados indireta ou diretamente afetados tenham sido ouvidos? Parece-me um tanto quanto paradoxal e, por que não dizer, incoerente.
Subsidiariedade: Outro conceito ambíguo, cujo alcance não é conhecido e precisa de explicações maiores para sua compreensão. Dado o caráter liberal do atual governo, a noção de subsidiariedade evoca a noção de o Estado auxiliar a iniciativa privada em sua atuação, que deve ser iniciada primeiro que o agir estatal. Levanta também a noção de que a responsabilidade do Estado seria subsidiária em relação aos danos porventura causados por seus agentes na prestação de serviços. Porém, acho uma posição temerária, pois o Estado possui funções típicas que não podem ser supridas pela livre iniciativa, especialmente no que tange a serviços públicos caracterizados como atividades típicas de Estado, ou ainda a oferta e tutela de direitos sociais ou de segunda geração. Além disso, pela impessoalidade, quando atua o agente público, o faz em nome do Estado. Assim definiu o constituinte reformador: O princípio da subsidiariedade está associado com a valorização do indivíduo e das instâncias mais próximas a ele, prestigiando sua autonomia e sua liberdade. Tal princípio, historicamente consolidado, visa a garantir que as questões sociais sejam sempre resolvidas de maneira mais próxima ao indivíduo-comunidade, e só subsidiariamente pelos entes de maior abrangência, ressaltando, no âmbito da Administração pública, o caráter do federalismo.
As mudanças propostas quanto ao vínculo entre servidores e Estados
Uma das diretrizes basilares da reforma é o fim da estabilidade para servidores públicos. A justificativa para tanto, segundo o ímpeto reformista assim se enumera:
- ARGUMENTO REFORMADOR: Modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação.
CONTRA-ARGUMENTO: De fato, o processo público de contratação por concurso público tira muito da autonomia gerencial, mas é preciso que se compreenda a prevalência do bem jurídico da estabilidade, que não é regalia, mas prerrogativa da atuação isenta, imparcial e legal do servidor público, que deve exercer tecnicamente suas atividades sem ingerência política de seus dirigentes, que via de regra, atuam por mandato ou em nome dos detentores de mandato, que dão provimento aos cargos de direção, com livre nomeação e livre exoneração.
- ARGUMENTO REFORMADOR: Aproximar o serviço público brasileiro da realidade do país.
CONTRA-ARGUMENTO: A ideia vendida de que os trabalhadores na iniciativa privada são depreciados em relação ao setor público é temerária. Mesmo porque, uma coisa não se relaciona à outra. Um estado justo e solidário não usaria a estratégia de culpabilizar servidores pelas mazelas sociais, mas assumiria a posição diretiva de conduzir a todos rumo ao desenvolvimento. Não são os servidores que possuem regalias, mas o Estado que valoriza as relações de dominação dos empresários sobre os empregados e agora busca precarizar a prestação de serviços públicos pela desvalorização de seus servidores e fragilização do vínculo. Se o setor público precisa se aproximar do privado, o mais acertado seria elevar os empregados da iniciativa privada a patamares mais elevados de reconhecimento e segurança e não igualar a todos em condições precárias de vínculo, segurança, retribuição e direitos.
- ARGUMENTO REFORMISTA: Garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade.
CONTRA-ARGUMENTO: Propuseram uma reforma trabalhista como pressuposto para o desenvolvimento nacional. Depois, uma reforma previdenciária segundo o mesmo argumento. Acontece que este desenvolvimento não ocorreu. Agora, segundo as mesmas falácias, querem culpar os servidores pelo déficit das contas públicas. Contudo, ainda que tenham tentado mascarar dados, entre as despesas obrigatórias de caráter continuado, o maior percentual e impacto sobre os gastos públicos são de aposentados e pensionistas, mesmo após a reforma da previdência. Além disso, importante montante dessas despesas refere-se aos encargos, juros e serviço da dívida pública, que eleva a taxa de juros para a sociedade, impactando sempre os mais necessitados ao enriquecer e desonerar as grandes fortunas, os banqueiros e os grandes empresários. Ademais, a reforma não atinge a casta superior do serviço público: magistrados, membros de Ministérios Públicos, auditores dos Tribunais de Contas, militares, políticos… o maior impacto em remuneração direta, benefícios, regalias e “penduricalhos” permanecerá intocado.
- Nos 97,7% incluem-se gastos com a dívida pública, aposentados e pensionistas e os “super servidores” que não serão atingidos pela reforma.
Analisados os argumentos e feitas as devidas considerações sobre estes, passemos à análise das mudanças de vínculo. Como etapa do processo seletivo em um concurso público para provimento de cargos que exerçam atividades típicas e para os cargos com prazo indeterminado, propõe-se a criação do “vínculo de experiência”. Em poucas palavras, após aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, uma vez nomeado, empossado e em exercício, o servidor será avaliado por certo período, considerando que, ao final deste, poderá sair sem nenhuma indenização, multa rescisória ou resgate de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), pois regido pelo Regime Próprio de Previdência do Serviço Público (RPPS).
É preciso que se destaquem alguns pontos do instituto do vínculo de experiência:
- É definido um prazo mínimo deste vínculo, que é etapa obrigatória do concurso, que é de 2 anos para Cargos Típicos de Estado e de 1 ano para Cargos com Prazo Indeterminado;
- Se são definidos prazos mínimos, implica dizer que estes prazos poderão ser ampliados, o que deverá ser feito por ato de cada Poder quando da realização do certame (imagine passar 3 ou 4 anos em vínculo de experiência e ser desligado sem nenhum direito ao fim);
- Os servidores serão avaliados durante este período e os mais bem avaliados serão classificados dentro do número de vagas previstas no edital, sendo que os que estiverem além do número, serão todos dispensados;
- Durante o período de vínculo de experiência não se pode exercer atividade remunerada. Portanto, se você está empregado e passa em concurso público, nada garante que nele você permanecerá: ao final o servidor pode perder o cargo público e o posto de trabalho que dispensou para continuar disputando uma vaga; e
- Como o servidor será regido por regime próprio (RPPS) e não pelo RGPS, não ganha nenhum tipo de indenização e nem pode resgatar FGTS.
Em meu entendimento, trata-se exploração de mão-de-obra e porque não dizer, de enriquecimento ilícito em nome da Administração Pública. Imagine uma situação em que certo indivíduo passe em concurso de agente de polícia (que deverá ser considerada atividade típica de Estado) em concurso público para o provimento de 200 vagas. Ao fim do período mínimo de 2 anos (poderia ser maior, segundo redação da PEC 32), fica em 201 na classificação, perdendo o cargo e deixando de ser servidor. Porém, dentro da corporação, se valeu de informações importantes em razão do cargo, teve porte e registro de arma de fogo, realizou diligências e trabalho ostensivo, cumprindo os deveres e atribuições do cargo. Sob este aspecto, portanto, seu desligamento pode representar perigo ao Estado.
Pensemos agora sob outro aspecto, o da avaliação de desempenho feita durante o vínculo de experiência. Toda e qualquer avaliação está sujeita a subjetividade e, considerando que os cargos de direção superior são normalmente ocupados por agentes públicos detentores de mandato e com forte caráter político, como garantir a impessoalidade da avaliação segundo critérios objetivos? O instituto da estabilidade é que resguarda o servidor em sua atuação impessoal, imparcial e isenta, resguardada pela lei e apta a coibir desmandos hierárquicos arbitrários e que excedam o poder legal conferido ou se desviem da finalidade pública, trazendo lesão ao direito e à juridicidade dos atos. Por fim e muito importante: estabilidade não é regalia ou vantagem, mas uma prerrogativa e proteção não só do servidor, mas da sociedade em geral.
Cabe lembrar que o concurso terá prazo improrrogável e que o aprovado terá prioridade sobre novos concursados para assumir o cargo ou emprego público.
O que são e quais são as Carreiras Típicas de Estado
Não há regulamentação legal do que seriam tais carreiras. Dispositivo constitucional define que Lei Complementar deverá de estabelecer critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado, prenunciando a possibilidade de perda mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, assegurada ampla defesa. Tramitam no Congresso alguns projetos de Lei visando classificar o que são e quais são tais carreiras, mas ainda não existe uma definição exata.
De acordo com o Fórum das Carreiras Típicas do Estado (Fonacate), tais carreiras seriam aquelas que correspondem “aos interesses fundamentais, precípuos do estado e, em razão disso, exigem dos ocupantes não apenas um conhecimento diferenciado, mas igualmente a disponibilidade de arcar com elevadas responsabilidades, o que os diferenciam dos demais servidores públicos”.
Ainda que não haja definição e classificação, de acordo com o enunciado acima proposto, é possível classificar como típicas do estado, as carreiras da área de fiscalização tributária e de relação de trabalho, arrecadação, finanças e controle, gestão pública, comércio exterior, áreas da segurança pública, diplomacia, advocacia pública, defensoria pública, regulação, política monetária e inteligência de estado, além de planejamento e orçamento federal, magistratura e ministério público. Conforme resta evidente, tais atividades são peculiares da atuação estatal, diferindo sobremodo das atividades realizadas pela iniciativa privada, não sendo por elas substituídas. Carreiras de cunho mais operacional e relacionadas a atividades de mero expediente, segundo meu entendimento, não serão abarcadas – técnicos de nível médio em geral.
Por mais que não se tenha uma definição precisa, é fácil definir o que é, mas não e tão simples definir o que não é atividade típica de Estado. Analistas e técnicos em geral não seriam típicos. Mas enquanto Analista de Gestão Pública, por exemplo, desenvolvo atividades inerentes somente ao trato público, lido com orçamento, bens e valores públicos, realizo contratações segundo regras e procedimentos licitatórios, faço projetos básicos e notas técnicas, instruo dispensa e inexigibilidade de licitação, o que é tipicamente público e deve ser protegido da esfera privada e do mercado. Há muita discussão a ser desenvolvida e não por acaso o legislador infraconstitucional ainda não tenha produzido a norma prevista.
Uma vez apontados tais questionamentos, vejamos o que a PEC reserva para os Cargos Típicos de Estado em pontos:
- Provimento por meio de concurso público de provas ou de provas e títulos;
- Deverá cumprir período de no mínimo dois anos de vínculo de experiência, com desempenho satisfatório;
- Deverá ter classificação entre os mais bem avaliados após o vínculo de experiência, dentro das vagas do edital;
- Só este cargo poderá obter estabilidade, após um ano do término do vínculo de experiência, com desempenho satisfatório;
- Veda-se a este cargo a redução de jornada de trabalho, mesmo que com a respectiva redução de remuneração;
- Em regra, veda-se a acumulação de cargos, permitido o cargo de docência e de atividade própria de profissional de saúde, desde que haja compatibilidade de horários;
- Os critérios para definição de cargos típicos de Estado serão estabelecidos em Lei Complementar federal;
- O vínculo previdenciário será por meio de Regime Próprio (RPPS); e
- A perda do cargo pode ocorrer em razão de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado e mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa (se a demissão do servidor estável for invalidada por sentença judicial ele será reintegrado, com ou sem existência de vaga).
Quanto ao último aspecto, de possibilidades de perda do cargo, cabe uma consideração importante. A possibilidade de perda do cargo antes do trânsito em julgado, no caso de decisão proferida por órgão judicial colegiado parece-me ilegal, pois afasta o princípio da presunção de inocência, bem como o preceito penal in dubio pro reo.
Um último ponto que devo destacar é que a regra de acumulação de cargos e regime de dedicação exclusiva vale para antigos e novos servidores. Se minha atividade como analista de gestão pública for considerada típica de Estado, por exemplo, não poderei mais dar aulas em preparatórios para concurso, pois não caracteriza atividade de “docência”, nem atividade da área de saúde.
Disposições para Cargos com Tempo Indeterminado
A PEC 32, tal qual apresentada, não apresenta nenhuma garantia ao servidor de Cargos por tempo indeterminado. Assim como o Cargo de Atividade Típica de Estado, também se submeterá ao vínculo de experiência, sendo igualmente regido pelo Regime Próprio de Previdência (RPPS). Quais cargos e quais critérios para sua classificação neste grupo deverá ser objeto de regulamentação por meio de Lei Complementar. De modo geral, são características dessa forma de provimento:
- Provimento por meio de concurso público de provas ou de provas e títulos;
- Deverá cumprir período de no mínimo um ano de vínculo de experiência (pode ser maior), com desempenho satisfatório;
- Deverá ter classificação entre os mais bem avaliados após o vínculo de experiência, dentro das vagas do edital;
- Este cargo jamais adquire estabilidade, estando seu ocupante sujeito à perda a qualquer tempo, sob as mais diversas circunstâncias.
Para mim, a postura destacada demarca o maior retrocesso existente quanto a assuntos de reforma. Instituída à década de 1930 por Getúlio Vargas, a estabilidade servia de garantia para o sistema de mérito por meio de concursos públicos, defendendo a postura impessoal e apolítica dos servidores públicos.
Via de regra, a atuação da alta direção dos Poderes e do Executivo, em todas as suas esferas, é feita por meio de agentes políticos, investidos em seus cargos por meio de eleição, nomeação ou designação, cuja competência advém da própria Constituição, como os Chefes de Poder Executivo e membros do Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, Ministros de Estado e de Secretários nas Unidades da Federação, os quais não se sujeitam ao processo administrativo disciplinar. Como bem se sabe, estes atuam por mandato e ficam na gestão por um período determinado de tempo, em alguns casos por dois anos, em outros, por quatro anos e, no caso do Executivo, o mandato pode chegar a oito anos, no caso de reeleição do Presidente da República, por exemplo.
As discussões acerca dos mandatos é apenas o gancho para argumentação mais profunda. O que quero deixar evidente é que a gestão pública, por si, é muito descontínua. Os dirigentes, que não são submetidos ao crivo dos concursos, são eleitos e satisfazem, quase sempre, os anseios de certos grupos de interesse, o que caracteriza o forte caráter político da direção superior. Por sua vez, ao assumirem, distribuem os cargos e funções de acordo com sua linha ideológica e de pensamento, ainda caracterizado pelo teor político. Por assim dizer, a direção está em constante mudança e, com ela, os cargos de chefia que são responsáveis pelas avaliações formais de desempenho. Entra gestão, sai gestão, os servidores permanecem. Se estáveis, podem se negar a cumprir ordens manifestamente ilegais ou arbitrárias, ou ainda as ordens que se revestem de legalidade, mas escapam da finalidade pública e atendem interesses particulares. Não raro, servidores são submetidos a assédio moral e sofrem retaliações por sua atuação impessoal, vide exemplos em municípios Brasil afora. Estes que já sofrem serão os maiores apenados com a reforma.
O fim da estabilidade é um perigo para o serviço público. É ela que garante a atuação impessoal, profissional e meritocrática do servidor, isenta de quaisquer mecanismos que não se coadunem com a legalidade. Por mais que todos tenham enxergado com espanto a proposição de seu fim, devo ressaltar que há na PEC pontos ainda mais tenebrosos, que não só precarizam o serviço público, mas que podem acabar com os concursos públicos. Para concluir, é essencial que se reafirme à sociedade inteira que a estabilidade não é uma regalia ou benefício, mas uma conquista social em benefício da legalidade e da impessoalidade da gestão pública, protegendo o patrimônio público das ingerências políticas e de sua usurpação para finalidades pessoais.
Quando a regra da estabilidade deixará de valer, caso aprovada a Emenda
Além da dúvida quanto ao que seria Carreira de Estado, outro questionamento que assola os aspirantes a cargos públicos é quando passará a valer a nova regra, que põe fim à estabilidade, caso a Emenda seja aprovada sem alterações. É importante dizer que a reforma não se concretizará apenas por meio da Emenda à Constituição. Haverá outra disposições e regramentos infraconstitucionais que ampliem o escopo e integralizem a reforma, que ocorrerá em diversas etapas.
Os atuais servidores públicos não serão afetados imediatamente pela reforma. Eles irão manter seus regimes, a estabilidade e serão submetidos às regras de sua “contratação” e vínculo. Segundo a PEC, se o servidor for investido, ainda que a Emenda tenha sido aprovada, mas não tenha sido regulamentado o novo Estatuto do ente federativo, ainda valerá a regra anterior. Lembrando que a investidura ocorre com a posse e não com a homologação do concurso e nem com a nomeação, mas a partir da posse. Acredito que a maior parte dos órgãos e Poderes esperarão pela confirmação da reforma para retomar o curso de suas contratações e acredito que, mesmo realizado o concurso, as nomeações tomem tempo, bem como as respectivas posses. Para ilustrar, vamos às situações hipotéticas:
1ª – Passei em concurso antes da reforma e fui nomeado e tomei posse antes da aprovação da PEC. A Emenda foi aprovada em seu inteiro teor: PODEREI ADQUIRIR ESTABILIDADE PELO REGIME ANTIGO.
2ª – Passei em concursos após a reforma, fui nomeado e tomei posse, mas o ente federativo não definiu seu novo estatuto: PODEREI ADQUIRIR ESTABILIDADE PELO REGIME ANTIGO.
3ª – Passei em concurso antes da aprovação da PEC, neste interim, a reforma passou em inteiro teor, mas fui nomeado e tomei posse somente após a aprovação de novo estatuto do ente federativo para o qual fiz concurso: SEREI REGIDO PELAS NOVAS REGRAS, AO VÍNCULO DE EXPERIÊNCIA E, A MENOS QUE SEJA PARA CARGO TÍPICO DE ESTADO, NÃO PODEREI MAIS ADQUIRIR ESTABILIDADE APÓS TRÊS ANOS.
É importante entender que tudo está sendo tratado em termos de Projeto de Emenda à Constituição e que as possibilidades são consideradas com a aprovação em inteiro teor, tal qual proposta pelo governo. Muitas análises serão feitas, as pessoas deverão se manifestar, as casas congressuais deverão analisar e este não é um processo que agregue forte consenso, mas muitas polêmicas e implicações a serem estudadas, o que requer tempo e não deve nem ser aprovado tão rápido e nem sem grandes alterações. Essa é a hora de lutar e se fazer ver e ouvir, buscando apoio no Congresso e mobilizando potenciais influenciadores.
Para fixar, a PEC prevê que, ao servidor público investido em cargo efetivo, lembrando que a investidura ocorre com a posse, até a data de entrada em vigor de novo regime jurídico dos diversos entes federativos é garantido regime jurídico específico, assegurados:
- A estabilidade, após três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório;
- A avaliação de desempenho do servidor por comissão instituída para essa finalidade é obrigatória e constitui condição para a aquisição da estabilidade.
- O servidor a que se refere o caput, após adquirir a estabilidade, só perderá o cargo nas hipóteses previstas no art. 41, § 1º, incisos I a III, e no art. 169, § 4º, da Constituição.
Por fim, quanto a servidores efetivos e estáveis que venham a disputar novos cargos após a aprovação da Emenda, considerando que haja novo regime jurídico estatutário para os entes, provavelmente perderá sua estabilidade ao fazer a opção pelo novo regime jurídico. Contudo, trata-se de inferência minha e, considerando a demonização que tem sido feita do servidor, o atual governo não trará medidas que criem situações favoráveis, nos reservando a espera do pior.
Os Processos de Seleção Simplificada: Cargos com Prazo Determinado e os Cargos de Liderança Assessoramento
A Constituição Federal já contém dispositivo que preconiza a contratação temporária em seu Art. 37, IX: “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. A lei que exaustivamente estabelece os casos cabíveis desse regime é a 8.745/1993.
Em meu entendimento, parece absurdo o que a PEC 32 sugere para a contratação por prazo determinado, deixando margem para contratação ampla e irrestrita, praticamente extinguindo a necessidade de se fazer concurso, pois não há tantas reservas aos servidores concursados e de carreira. Além disso, a discriminação vaga de “atividades ou procedimentos sob demanda” dá margem para uma infinidade de situações que podem precarizar a relação do Estado com particulares, facilitando práticas arbitrárias e práticas de improbidade.
Quanto aos cargos de Liderança e Assessoramento, estes viriam para substituir os anteriores Cargos em Comissão e Funções Comissionadas, mas sem quaisquer reservas a servidores de carreira. As funções são privativas de servidores, todas elas, ao passo que normalmente os cargos comissionados, em geral, contemplam reserva de percentual aos servidores concursados. Em todos os casos, referem-se a cargos de livre nomeação e de livre exoneração.
Os cargos de Liderança e Assessoramento serão todos providos por seleção simplificada. Junto com as contratações de prazo determinado, podem significar o fim do concurso público. Concebendo a dimensão continental de nosso País, imagine como funcionará em vários municípios, em que práticas clientelistas já são adotadas com cargos e funções, em que apadrinhados são nomeados para servir aos detentores de mandato e não à sociedade. Imagine quantos “guardiões do Crivella” não teremos diante de tal quadro que se começa a pintar com a reforma. Para quem não sabe a que se refere o termo em destaque, agentes públicos (comissionados) da prefeitura do Rio de Janeiro faziam plantão na porta de hospitais municipais, atrapalhando reportagens e impedindo que a população falasse ou denunciasse problemas na área de saúde, com o intuito claro de proteger a imagem Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. A organização criminosa tem escalas diárias, horários rígidos e ameaças de demissão. O esquema é todo organizado em grupos do WhatsApp.
Segundo texto da PEC, os cargos de liderança e assessoramento serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas (lembrando que não há distinção entre cargos e funções), sendo que os Chefes de Poder disporão sobre critérios mínimos de acesso e sobre exoneração. As funções de confiança, os cargos em comissão e as gratificações de caráter não permanente existentes na data de entrada em vigor da Emenda à Constituição serão gradualmente substituídos pelos cargos de liderança e assessoramento, nos termos de ato do Chefe de cada Poder. Ficam mantidas as regras para a ocupação e concessão dos cargos em comissão, das funções de confiança e das gratificações a que se refere o dispositivo, conforme ato do Chefe de cada Poder, até a efetiva substituição pelos cargos de liderança e assessoramento.
Cumpre destacar que serão submetidos o Regime Geral de Previdência Social (RGPS):
- Agente público ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração
- De outro cargo temporário, inclusive mandato eletivo, ou de emprego público,
- Servidor com vínculo por prazo determinado; e
- Servidores admitidos exclusivamente para cargo de liderança e assessoramento
Que fique claro: durante todo o mandato, a gestão inteira poderá se valer das contratações precárias sem realizar um concurso sequer, afetando a continuidade das políticas públicas e sujeitando o serviço público a interferências políticas, deteriorando o caráter técnico da gestão e favorecendo práticas como a acima mencionada. Quem perde, portanto, não são só os servidores, mas todos a sociedade. As formas precárias de contratação de servidores com Cargo por Tempo Indeterminado associadas ao processo seletivo simplificado para temporários e cargos de liderança e assessoramento irão corroer as bases profissionais da gestão e serão em si o fim do concurso público. Que chefe do Executivo em suas diversas esferas fará concurso com a possibilidade irrestrita de contratações precárias e por processos seletivos simplificados? Ainda mais se consideradas as práticas de rente seeking ou apropriação da coisa pública em benefício próprio, o que não é algo raro, mas muito frequente em nosso País, do Oiapoque ao Xui, em regiões interioranas e capitais, em seus diversos rincões.
Regras para a acumulação de cargos públicos
Há vedação de acumulação de cargos ou qualquer outra atividade remunerada para os cargos típicos de estado (só pode de docência e atividade própria de profissional de saúde, desde que haja compatibilidade de horários). Porém, Lei Municipal poderá afastar o disposto no caso de municípios com menos de cem mil eleitores.
Durante o vínculo de experiência, em todos os casos, não se pode nem acumular cargos e nem exercer atividade remunerada. Se o candidato à vaga passar em concurso e estiver ocupando cargo em comissão, por exemplo, deverá entregar o cargo sem garantia de que será contemplado com uma das vagas do concurso. Os cargos com prazo indeterminado podem acumular, se houver compatibilidade de horários e não houver conflito de interesse, algo semelhante ao que já ocorre na iniciativa privada e, a meu ver, o único ponto que “flexibilizou” para o servidor, nos moldes do que se propõe a PEC 32.
Poderão manter os vínculos existentes na data de entrada em vigor da Emenda à Constituição, se houver compatibilidade de horário e observado teto remuneratório, os servidores (mesmo os categorizados em carreiras típicas de Estado) e os empregados públicos que acumulem:
- dois cargos ou empregos públicos de professor;
- um cargo de professor com um cargo técnico ou científico; ou
- dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
Por fim, Lei Complementar Federal definirá a duração total da jornada de trabalho para fins de acumulação de atividades remuneradas.
Impacto para os Empregados Públicos
Para os atuais empregados públicos, a PEC mantém a regra de férias, de progressão e concessão de aumento e indenizações retroativas. Para ambos, empregados atuais e futuros, a PEC torna nula a concessão de estabilidade no emprego ou de proteção contra a despedida por meio de negociação, coletiva ou individual, ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada. Ela também extingue o vínculo empregatício automaticamente e serão aposentados compulsoriamente ao atingir a idade de setenta e cinco anos, observadas as regras do RGPS para a concessão e o cálculo do benefício previdenciário.
Das vedações aos servidores apontadas pela PEC 32
Antes de adentrar nos pontos abaixo, é necessário que se compreenda a existência de diversos regimes estatutários, considerando os diversos entes federativos: união, estados, municípios e distrito federal. De modo geral, os estatutos foram criados com uma série de benesses e medidas protecionistas, o que ajudou a construir a visão negativa que se tem acerca do servidor público. A maior parte das regalias já não existem em âmbito federal, a exemplo da licença-prêmio. É importante que benefícios infundados sejam retirados, pois não há argumento moral ou jurídico para sua manutenção, parte com a qual concordo em quase todas as proposições da PEC 32, assim como concordei com pontos importantes da reforma administrativa encabeçada por Fernando Henrique Cardoso e seu Ministro Bresser Pereira em 1995, com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) e em 1998 com a Emenda Constitucional nº 19, que implementou as mudanças preconizadas na reforma gerencial.
De acordo com a PEC 32, veda-se a concessão:
- Férias + recesso por período superior a 30 dias pelo período aquisitivo de um ano;
- Adicionais por tempo de serviço;
- Efeitos retroativos sobre aumentos remuneratórios ou parcelas indenizatórias;
- Licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente exclusivamente de tempo de serviço;
- Redução de jornada, só com redução de remuneração (exceto por limitação de saúde);
- Aposentadoria compulsória como modalidade de punição;
- Adicional ou indenização só para substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento;
- progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço;
- parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos, valores e parâmetros em lei ou sem a caracterização de despesa diretamente decorrente do desempenho de atividades (não precisa para os empregados de empresas estatais) – ficam extintas após dois anos da data de entrada em vigor desta Emenda à Constituição; e
- a incorporação, total ou parcial, da remuneração de cargo em comissão, função de confiança ou cargo de liderança e assessoramento ao cargo efetivo ou emprego permanente.
Observa-se apenas que não se aplicam os dispositivos acima na hipótese de haver lei específica vigente em 31 de agosto de 2020 que tenha concedido os benefícios ali referidos, exceto se houver alteração ou revogação da referida lei, bem como os demais direitos previstos na Constituição. Além disso, os afastamentos e as licenças do servidor não poderão ser considerados para fins de percepção de remuneração de cargo em comissão ou de liderança e assessoramento, função de confiança, gratificação de exercício, bônus, honorários, parcelas indenizatórias ou qualquer parcela que não tenha caráter permanente.
Contratualismo de Resultados
Um ponto característico do liberalismo pressupõe um governo catalisador, que consegue associar ações e promover resultados por meio da ação conjunta e coordenada do da Administração Pública, com seus órgãos e entidades, da iniciativa privada e mercado e do voluntariado, que não possui fins lucrativos. Ainda que haja a previsão de mecanismos, preciso ressaltar que não há aqui uma inovação, posto que Fernando Henrique Cardoso já tratou sobre a temática em sua reforma e introduziu na pauta da governança pública os contratos de gestão entre as entidades e órgãos da Administração Pública, fenômeno caracterizado por “agencificação” e, e entre a Administração Pública e Organizações Sociais, o fenômeno da “publicização”.
Ainda que não seja uma inovação, considero importante a iniciativa de valorizar tais medidas, mas mais que dispor sobre, é preciso construir mecanismos que tornem tais práticas efetivas e não meras utopias. A PEC 32, portanto, prevê instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares (retirando-se as atividades privativas de cargos típicos de estado), com ou sem contrapartida financeira.
Por fim, Lei Federal posterior disporá sobre normas gerais para tanto, com competência plena dos demais entes, enquanto não editada a lei federal (que em caso de superveniência, suspende as demais leis no que forem contrárias).
Disposições a serem tratadas posteriormente por meio de Leis
Alguns importantes mecanismos de governança e que teriam impacto sobre a qualidade dos serviços públicos prestados e sua eficiência não foram tratados diretamente pela Emenda. Há, no entanto, reserva de Lei Complementar para tratar dos assuntos, o que por si é mais custoso, pois exige maioria absoluta ou quórum qualificado para aprovação. Se o objetivo era mesmo modernizar e dinamizar, por que não dispor por meio de Lei Ordinária, não em todos os casos, mais em alguns? São assuntos que deverão ser tratados posteriormente:
- Gestão de pessoas;
- Política remuneratória e de benefícios;
- Ocupação de cargos de liderança e assessoramento;
- Organização da força de trabalho no serviço público;
- Progressão e promoção funcionais;
- Desenvolvimento e capacitação de servidores; e
- Duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remunerada com competência plena dos demais entes, enquanto não editada a lei federal (que em caso de superveniência, suspende as demais leis no que forem contrárias)
- O disposto no caput não se aplica aos membros de instituições e carreiras disciplinadas por lei complementar específica prevista nesta constituição.
Um ponto importante, há muito pendente de regulamentação legal, refere-se aos mecanismos de avaliação de desempenho dos servidores. Até hoje não existe legislação infraconstitucional que regre a matéria e lhe dê efetividade. Portanto, uma medida acertada na PEC é a proposição de Lei Ordinária e não mais de Lei Complementar, que disporá sobre gestão do desempenho e as condições de perda, no decorrer de todo o período de atividade, dos vínculos e dos cargos em vínculo de experiência, vínculo com prazo indeterminado, cargo típico de estado.
Entes Federativos instituirão seus regimes jurídicos de pessoal, obedecendo necessariamente às regras de vínculo de experiência, dos cargos com vínculo por prazo determinado, dos cargos típicos de Estado e dos cargos de liderança e assessoramento. Ainda, ato de Chefes de Poder poderá estabelecer perda do cargo por prazo indeterminado em razão da obsolescência das atividades relativas às atribuições do cargo público, o que vejo como temerário: se o servidor público prestou eficiência e dedicação suas atividades quando da necessidade do cargo, deve ser mantido o instituto da colocação em disponibilidade e do aproveitamento, tal qual disciplina a 8.112/90 e o Decreto 3.151/1999, uma vez que defendo a manutenção da estabilidade.
A Emenda Constitucional do Super Presidente
Assim limita a Constituição Federal a atuação do Presidente da República:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
- a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
- b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;
Como bem se sabe, a Constituição de 1988 é chamada de Constituição Cidadã e não por acaso. Antes de sua promulgação, o País viveu anos sombrios de uma ditatura militar, que dava plenos poderes ao Presidente para dispor sobre o que quisesse. Por isso mesmo, como meio de coibir práticas arbitrárias, usurpação de poder e atos contrários ao novo ordenamento jurídico é que a Constituição se cercou de mecanismos de proteção aos direitos e conquistas dispostos em seu texto. O que se pretende com a Emenda beira o absurdo, dando plenos poderes ao Presidente para agir sem a chancela do Legislativo e ao arrepio do sistema de freios e de contrapesos: receberá, caso aprovados os dispositivos da Emenda, um cheque em branco para agir sem que passe pelo crivo da lei, sem que haja atividade legiferante por parte das casas congressuais.
Se a emenda passa em seu inteiro teor, poderá o Presidente dispor mediante Decreto Autônomo, desde que não haja aumento de despesa (o único limitante), sobre:
- Organização e funcionamento da administração pública federal;
- Extinção de cargos efetivos vagos;
- Extinção de cargos (ocupados ou vagos) de Ministro de Estado, cargos em comissão, cargos de liderança e assessoramento, funções de confiança e gratificações de caráter não permanente;
- Criação, fusão, transformação ou extinção de Ministérios e de órgãos diretamente subordinados ao Presidente;
- Extinção, transformação e fusão de entidades da administração pública autárquica e fundacional (só não pode a criação);
- Transformação de cargos públicos efetivos vagos, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão e cargos de liderança e assessoramento, funções de confiança e gratificações de caráter não permanente vagos ou ocupados, desde que seja mantida a natureza dos vínculos de que trata o art. 39-A (poderá ocorrer na hipótese de cargos típicos de Estado, dentro da mesma carreira);
- Alteração e reorganização de cargos públicos efetivos do Poder Executivo federal e suas atribuições, desde que não implique alteração ou supressão da estrutura da carreira ou alteração da remuneração, dos requisitos de ingresso no cargo ou da natureza do vínculo (não se aplica aos cargos típicos de Estado);
Imagine a situação esdrúxula em que uma estatal (empresa pública ou sociedade de economia mista), autorizada sua criação por meio de lei, ser extinta por simples ato do Presidente. Sim, pois ele poderá fazer isso caso a Emenda seja aprovada em seu inteiro teor. E quanto a órgãos, não só poderá extinguir como também criar, o que equivale a proliferar estruturas ao seu bel prazer, simplesmente para atender interesses políticos e lotear cargos do governo. Outro ponto importante, caso você seja defensor do atual presidente, é considerar que a Emenda não vale só para ele, mas para todo e qualquer presidente que venha a suceder. Se a filosofia é de estado mínimo, o presidente enxugará a máquina ao máximo, atribuindo serviços públicos à iniciativa privada, que cobrará por eles, privatizando, contratando temporários e admitindo irrestritamente em cargos de livre nomeação e livre exoneração. Se a filosofia é do estado forte, proliferará estruturas, deixar a máquina inchada e engessada, constituirá muitas amarras burocráticas e centralização. Em meu entendimento é a parte mais absurda desta PEC e que beira a ilegalidade. Pensem bastante a respeito disso, pois não compreenda a emenda como algo que afeta ou beneficia a gestão de um só Presidente, mas de todo e qualquer outro que chegue legitimamente ao poder. E pela regra da simetria, lembre-se que governadores e prefeitos terão as mesmas prerrogativas no âmbito de seu ente federativo.
Análise do Processo Legislativo e tramitação no Congresso
Ainda que o Ministro Paulo Guedes tenha dito que a Emenda seja aprovada ainda neste ano com facilidade, não se pode crer nisso. Como bem se sabe, a PEC registra entrada e inicia análise na Câmara dos Deputados na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC), que se verificará a admissibilidade, para depois ser dirigida à Comissão Especial (CE) para aí sim se iniciar a análise de mérito. A meu ver, há tantas inconstitucionalidades, que deveria ser barrada já na CCJC. Na Comissão Especial será analisado o texto proposto e suas implicações, aplicando a técnica legislativa para adequá-lo quanto à forma e alcance, ou seja, a fase de emendas, nas 10 primeiras sessões, em que se espera a “desidratação” da proposta, pois há dispositivos flagrantemente danosos ao serviço público e à sociedade – aqui reside a importância de se procurar os seus parlamentares para obter apoio, disseminando o máximo possível de informação e se fazendo ver/ouvir e se representar. Na sequência, a proposta vai a Plenário da Câmara, sendo apreciada em 2 turnos de votação, sendo aprovada por 3/5 dos deputados, o que equivale a 308 votos favoráveis, dos 513 possíveis. Depois disso, a proposta vai ao Senado Federal, que também faz análise de mérito e constitucionalidade na CCJC, para só então ser votada e aprovada em 2 turnos e por 3/5 dos membros da casa, o que equivale a 49 votos favoráveis.
Os trâmites acima tratados relacionam-se a condições normais. Porém, o que é bastante oportuno para o governo, em razão da pandemia do Covid-19 se instalou o Sistema Deliberativo Remoto (SDR), que poderia flexibilizar o rito de tramitação. Rodrigo Maia (DEM/RJ), declarou que poderá apensar a proposta enviada pelo Governo em alguma outra que já esteja pronta para debate em Comissão Especial na Casa, de modo que a etapa de análise de admissibilidade pudesse ser suprimida, o que considero um extremo absurdo diante de toda a argumentação que até então perfilei neste texto. Caso este entendimento prevaleça, a proposta iniciará sua tramitação diretamente no âmbito de uma Comissão Especial, que teria apenas 40 dias para concluir seus trabalhos. Devemos nos manifestar quanto a este ponto. A PEC deu entrada formal em 03 de setembro. Houve no dia 10 de setembro um requerimento de apensação pelo Deputado Rubens Bueno (CIDADANIA/PR): “Requer a apensação da Proposta de Emenda à Constituição nº 435, de 2018, à Proposta de Emenda à Constituição nº 32, de 2020”. Se aprovada, retira a análise de admissibilidade/constitucionalidade da CCJC. Precisamos ter conhecimento, portanto, desta PEC 435/2018.
Considerações Finais
Gostaria de ter uma análise positiva acerca da reforma e de seus dispositivos, mas a única conclusão plausível é acerca da lesividade da reforma em seu inteiro teor. Mesmo no que pareça apropriada quanto ao desenvolvimento da máquina por critérios gerenciais, é ambígua, sem maiores explicações acerca de medidas modernizadoras e sem medidas efetivas para deixar a máquina mais eficiente.
Segundo argumentos do governo ao propor a Reforma, há um enorme gasto com pagamento de pessoal, mas mascaram dados e informações: as despesas obrigatórias de caráter continuado não se referem apenas à pessoal ativo, mas ao pagamento da dívida pública e aos aposentados e pensionistas. Além disso, busca-se criar uma visão deturpada sobre os servidores públicos em geral, evocando na sociedade um sentido de “justiça social” ao tentar equiparar o serviço público com a iniciativa privada. Contudo, a PEC 32 não atinge o sistema de benesses das categorias que reforçam a visão deteriorada e falaciosa do servidor público como um parasita: ainda que na conta a elite privilegiada do serviço público para satanizar os servidores, essa mesma elite está excluída do texto reformista, por razões óbvias – são fortes o suficiente para inviabilizarem a reforma.
A reforma não beneficia a sociedade. Ao contrário, ao fragilizar os vínculos do servidor com o Estado, abre para possíveis práticas clientelistas e patriarcais, deixando a atividade pública pouquíssimo atrativa e insegura, o que em longo prazo resultará em declínio do caráter técnico na prestação de serviços públicos em favor do caráter político, na deterioração do clima organizacional, em práticas competitivas, puxassaquismos e pessoalidade da gestão.
Quanto aos poderes evocados aos chefes do Executivo, uma vez que pelo princípio da simetria o que se propõe ao Presidente alcançará Governadores e Prefeitos, há enorme insegurança jurídica, dispondo de mecanismos importantes para a democracia vigente, tal qual o accountability horizontal feito pelo controle legislativo. Não se pode renunciar ao sistema de freios e de contrapesos em favor da entrega de um “cheque em branco assinado” para que o Presidente disponha livremente sobre a administração pública, criando e extinguindo órgãos, transformando cargos efetivos em cargos de liderança e assessoramento, extinguindo entidades, criando e extinguindo Ministérios. Beira o absurdo, conforme defendo ao longo de minha argumentação.
Em pronunciamento recente o Ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a reforma deverá ser aprovada ainda este ano. Ainda que tenham imposto uma proposta de emenda em plena pandemia, dificultando a ação de pessoas contrárias, não podemos aceitar quietos essa tramitação célere e sem que sejamos ouvidos. Duvido que com tantos pontos controversos essa reforma seja realizada assim tão rapidamente e que não se desidrate o texto tal qual proposto, uma vez que há muita polêmica do começo ao fim.
Se você estuda para concurso e não é servidor, mobilize-se e procure parlamentares que encampem nossa causa. Se você está aprovado em concurso ou inscrito em algum, não se espante se retardarem os processos seletivos, as nomeações e as posses para que as realizem após a aprovação dos novos regimes estatutários que deem efetividade aos vínculos precários propostos pela reforma. Por isso, peço que lutem conosco.
Se você acha que sua carreira não será atingida, pois provavelmente será enquadrada como típica de Estado, saia de seu extremo egoísmo e lute conosco contra o vínculo de experiência e precarização do serviço público. Se você é servidor efetivo e estável como eu e acha que a reforma não o atingirá, acorde: a reforma implodirá o Estado por dentro, começando pelo serviço público, que terá forte ingerência política, destruirá carreiras e colocará nossas ações técnicas à deriva e em favor de um regime competitivo interno que não agregará valor nenhum à prestação dos serviços à comunidade.
Se você é da iniciativa privada, cidadão que não pensa em fazer concursos ou não sonha em ser servidor, ajude-nos, pois a imagem vendida de servidor parasita não é real e defendê-la é concordar com a existência de práticas arbitrarias e clientelistas de usurpação da coisa pública em favor da corrupção. Saiba ainda que os reais “marajás” do serviço público não serão atingidos pela reforma, mas professores, profissionais de saúde, educação, os da linha de frente no atendimento à sociedade serão extremamente impactados. Não vejo beneficiados diretos além do governo atual, que poderá usar a máquina para aumentar sua atuação e influência, causando prejuízos irreversíveis à máquina pública e ao ordenamento jurídico pátrio, ampliando ainda mais as desigualdades sociais e o fosso existente entre carreiras públicas, uma vez que a elite do setor público permanece intocada, bem como os parlamentares com tantas regalias.
Para que reflitam, por fim, deixo versos antigos, mas extremamente atuais de Bertold Brecht, dramaturgo alemão:
Intertexto
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Bertolt Brecht
OBSERVAÇÃO: Este texto é de inteira autoria de Renato de Sousa Lacerda, baseado na Proposta de Emenda à Constituição nº 32, que trata da Reforma Administrativa apresentada pelo Governo Federal. Quaisquer reproduções, recortes e publicações deverão citar a autoria, respeitando o trabalho e dedicação despendidos para sua produção.
Por Renato Lacerda
Bacharel em Administração
Especialista em Gestão Pública
Analista de Gestão Pública do Ministério Público da União
Professor de Administração Pública, Administração Geral e Gestão de Pessoas