por Paulo Kliass
Paulo Guedes se aproximou do então candidato à Presidência da República ainda ao longo de 2018. Tratava-se de uma manobra esperta para ambos, ainda que a grande maioria do establishment político á época ainda não levasse esse projeto eleitoral muito a sério. Afinal, o que levaria um “old chicago boy” e operador do supostamente sofisticado mundo do financismo a se entusiasmar pelas ideias de um tosco deputado do baixo clero e ardoroso defensor da tortura e da pena de morte?
Ocorre que as fortes empatias logo se revelaram bastante harmoniosas entre ambos. Afinal, um participou entusiasticamente da equipe econômica do sanguinário governo liderado pelo General Pinochet no Chile, logo após o golpe militar de 1973. Já o outro fez da sua vida política uma defesa aguerrida dos governos da ditadura militar que se implantou no Brasil logo após ao golpe de 1964. A sinergia entre o futuro presidente e seu principal assessor para assuntos econômicos à época da campanha transformou-se em encantamento recíproco. Tanto assim que o banqueiro foi convertido em superministro da economia a partir de 1º de janeiro de 2019.
A presença de Paulo Guedes no núcleo da equipe do ex-tenente, reformado como capitão, facilitou em muito a tarefa de tornar o nome de Bolsonaro como um candidato mais palatável para parte das elites tupiniquins. A passagem para o segundo turno surpreendeu a grande maioria dos analistas políticos e o apoio dos operadores do sistema financeiro foi fundamental para a sua vitória em 28 de outubro de 2018, quando superou a votação de Fernando Haddad. Para tanto, o deputado da extrema direita contou ainda com os bons serviços prestados também pelo então juiz Sérgio Moro. Anos depois, vieram a público todas as ilegalidades cometidas no processo contra Lula, onde o xerife da República de Curitiba terminou por condenar o ex-presidente de forma irregular e arbitrária, para mantê-lo na prisão e impedir que ele concorresse às eleições.
Guedes faz o serviço sujo
No entanto, apesar de todas as promessas alardeadas por Guedes, o fato concreto é que ele pouco conseguiu fazer em termos de política econômica de modo a facilitar a vida política e eleitoral de seu chefe. Aliás, muito pelo contrário! O desemprego segue batendo recordes a cada nova pesquisa apresentada pelo IBGE. Os indicadores de miséria e de pobreza só fizeram aumentar desde então. A austeridade fiscal levada a ferro e fogo pela equipe da economia só tem reduzido a capacidade de implementação de políticas públicas nas áreas sociais, como assistência social, saúde, educação, previdência e outras. Foram mantidas todas as amarras fiscais, como a limitação do teto de gastos imposto pela Emenda Constitucional 95 e a obstinação com resultados positivos na contabilidade do superávit primário.
A popularidade de Bolsonaro tem caído de forma sistemática, tanto em função da incapacidade do seu governo apresentar propostas positivas para os problemas econômicos e sociais do País desde a sua posse, assim como pela política de genocídio levada a cabo a partir do início da pandemia. Paulo Guedes se mantém desde o começo aferrado aos dogmas de privatização e do arrocho fiscal, focando apenas na estratégia de destruição do Estado e desmonte das políticas públicas. Mas essa obsessão em atender exclusivamente aos interesses do topo da pirâmide da desigualdade não ganha votos nem ajuda a reverter a trajetória das pesquisas de um governo impopular.
Apesar de tudo, o comportamento de abutre de parte de nossas elites faz com que sua relação com o bolsonarismo oscile a cada momento. Assim, elas tendem a virar o rosto em sinal de desaprovação para as propostas mais próximas da barbárie que o presidente defende dia sim, outro também, mas se entusiasmam com as medidas de privatização, de liberalização generalizada e de desmantelamento do setor público que Guedes segue levando em frente. Fazem carinha de nojo aos exageros de algumas propostas mais extremistas do núcleo duro, mas apoiam a venda da Eletrobrás e liquidação dos Correios. Chegam a expressar uma ou outra discordância quando o assunto é a evidente transformação do Brasil em um pária internacional, mas vibram desavergonhadamente com a liquidação dos direitos trabalhistas e a precarização crescente das relações entre empresas e assalariados.
Não à PEC 32!
Esse é contexto em que se dá o debate atual a respeito da assim chamada “Reforma Administrativa”. Na verdade, uma discussão muito mal feita e confusa, exatamente para impedir que se chegue aos pontos chaves da questão. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32 vai completar um ano desde sua apresentação oficial pelo governo ao Congresso Nacional. Em 09 de setembro de 2020, o Ministro da Economia encaminhou uma mensagem ao poder legislativo em nome do governo, apresentando a PEC em questão. A proposta é um verdadeiro monstrengo jurídico e constitucional, sem falar nas aberrações das medidas relacionadas à destruição das capacidades estatais, à liquidação da máquina pública e ao flagrante desrespeito aos direitos dos cidadãos e dos próprios servidores. Longe do significado de aperfeiçoar que o substantivo “reforma” normalmente carrega, a proposta só pretende reduzir e desqualificar todo tipo de serviço público.
Ao longo destes quase 12 meses de tramitação, o material segue ainda na Câmara dos Deputados sob análise de uma comissão especialmente constituída pata essa missão. Foram realizadas várias audiências públicas com especialistas, economistas, juristas e entidades de servidores públicos. O único amplo consenso que foi obtido refere-se à avaliação de que o melhor caminho é o governo retirar a peça de firma definitiva. Ao que tudo indica, a verdadeira intenção de quem elaborou o documento é destruir e confundir. Na verdade, trata-se da eterna estratégia de Paulo Guedes em sua relação com o setor público. Na condição de um raro exemplar de pseudo liberal – um misto de impostor e oportunista, que fez fortuna às sombras do Estado brasileiro e às custas do Tesouro Nacional, ele busca destilar todo o seu ódio ideológico mal resolvido psicanaliticamente na destruição de seu objeto de desejo.
Porém, o problema é que essa parcela obtusa das elites ainda enxerga na PEC 32 a possibilidade de pegar mais uma carona no veículo destruidor de Guedes e segue flertando abertamente com a aprovação da medida. Sempre na linha de fechar o nariz para os odores pútridos de Bolsonaro e seu entorno, os representantes do financismo não escondem seu apoio à aprovação de mais uma proposta de redução da atual dimensão do setor público. Na verdade, apostam na transformação desse espaço que a Constituição Cidadã de 1988 oferece de direitos da saúde, da educação, da previdência, da assistência, da segurança, da pesquisa, entre tantos outros, em um potencial de acumulação privada de capital.
PEC 32 é a cara do bolsonarismo
A resistência a tal intento se amplia a cada dia e ultrapassa as fronteiras das entidades dos servidores públicos. Cada vez mais a sociedade civil e os próprios meios de comunicação percebem o risco envolvido na PEC 32. Sim, pois ela oferece poderes ditatoriais ao presidente de plantão, permitindo a eliminação de órgãos da administração pública sem autorização do legislativo, a demissão de servidores com o fim da estabilidade e a extinção de carreiras a seu bel prazer. Na verdade, essa PEC é a cara do bolsonarismo no seu conhecido trato autoritário e patrimonialista com o setor púbico.
Dia 18 de agosto será mais um dia nacional de luta contra a medida. As centrais sindicais, as entidades dos servidores e demais entidades do movimento democrático e progressista farão chegar aos parlamentares o seu descontentamento com o texto. A indicação da greve e demais formas de mobilização pretendem se somar com a demonstração de que a sociedade não quer ainda mais redução da capacidade que o Estado tem de oferecer serviços de qualidade aos seus cidadãos e cidadãs.
Para isso, todos se unem no grito pela derrubada da PEC 32!
* Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Fonte: Portal Vermelho