Artigo por Paulo Gil Introíni – Teoria e Debate
A velha prática das classes dominantes de se apropriar das bandeiras populares mudando-lhes a natureza e o sentido tem sido recorrentemente aplicada ao debate da reforma tributária no Brasil. O motivo é evidente: a disputa sobre quem irá financiar o Estado e as políticas públicas é inerente à tributação. Trata-se de uma das expressões do conflito de classes. É imperdoável dizer que se trata de mera discussão técnica, a não ser que se pretenda restringir o campo de debate a “especialistas”.
No Brasil, metade da renda das famílias mais pobres é absorvida pela carga tributária, situação decorrente da elevada concentração de tributos incidentes sobre o valor dos produtos e serviços consumidos pela população. Nossa tributação praticamente não alcança o topo da pirâmide social. É irrisória sobre as altas rendas e o grande patrimônio. A manutenção da política tributária em vigor desde os anos 1990, de imputação preferencial do ônus do financiamento do Estado aos mais pobres, constitui um sucesso notável da ideologia dominante.
O caminho da iniquidade é pavimentado pelo mantra da simplificação tributária. A mensagem subjacente é que a tributação da renda e do patrimônio é complexa. Apresentaria maior dificuldade de fiscalização e cobrança, motivo pelo qual deveríamos preferir as bases tributárias ao alcance da mão, objeto do desejo do modelo de arrecadação fácil e vulgar. Como ensina a sabedoria popular: para alimentar um peixão, são necessários vários peixinhos. Precisa ficar claro para todos que a tributação exagerada sobre o consumo é a contrapartida da baixa incidência sobre o grande patrimônio e as rendas muito elevadas. Em “papo reto”: os pobres pagam muito porque os ricos não pagam quase nada.
A fratura exposta da tributação brasileira: o imposto sobre a renda não é para todos Houvesse uma “bala de prata” para acabar com a distorção mais grave e perniciosa de nosso modelo tributário, qual o alvo? Um dia depois do Natal de 1995 , foram concedidos dois benefícios insuperáveis aos sócios e acionistas de empresas estabelecidas no país. O primeiro, uma isenção total do imposto de renda em relação aos lucros e dividendos distribuídos pelas pessoas jurídicas. Na prática, enquanto os trabalhadores informam o total anual de seus salários na ficha de rendimentos tributáveis, os empresários declaram como isentos os valores recebidos como lucros ou dividendos e não pagam um centavo de imposto.
A isenção se aplica igualmente se os sócios ou acionistas forem pessoas jurídicas. Nesse caso, o valor recebido não integrará a base de cálculo do IR da empresa beneficiária. Não importa se o sócio ou acionista é domiciliado no país ou no exterior e não há valor limite para a isenção
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Papai Noel sempre foi mão-aberta com os ricos. Na mesma ocasião, os beneficiários das rendas do capital receberam um outro presente, ainda melhor. Foi criada uma ficção jurídica segundo a qual o lucro também pode ser chamado de “juros sobre capital próprio” (JCP). Tais lucros-juros, creditados ao sócio ou acionista, sofrem apenas uma retenção de 15%, e fica por isso. A pessoa jurídica que distribui JCP também ganha, porque poderá deduzi-los na apuração de resultados – uma despesa fictícia. Economizará 19% sobre o montante distribuído aos sócios, uma vez que, sem a dedução mencionada, pagaria 34% de tributos sobre seus lucros (25% de IR e 9% de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). E assim, nove entre dez estrelas do mundo dos negócios preferem chamar os lucros recebidos de “juros sobre o capital próprio”.
As remessas ao exterior também ficaram sem tributação do IR. Somente em 2013, as remessas de lucros e dividendos das empresas estrangeiras instaladas no país totalizaram US$ 23,8 bilhões e, nos últimos oito anos, atingiram o volume de US$ 171,3 bilhões. A isenção na distribuição dos resultados induz muitos profissionais liberais a formar uma pessoa jurídica, quando então receberão sob a forma de “lucros”. Outro efeito colateral é a indução às fraudes nas relações trabalhistas, com perda de direitos e dano à Previdência Social.
Nesse embalo, algumas categorias de trabalhadores passaram a reivindicar a isenção da participação nos lucros e resultados (PLR), como forma de garantir “isonomia” em relação aos capitalistas. Não seria mais justo e apropriado incluir os sócios e acionistas no rol dos tributados e aliviar a carga pesada sobre os trabalhadores por meio de alterações das classes de incidência da tabela progressiva do IR, inclusive ampliando o limite de isenção da classe inicial?
O custo disso tudo para o financiamento das políticas públicas é muito elevado. No ano-calendário de 2012 foram declarados R$ 207 bilhões de lucros e dividendos recebidos pelas pessoas físicas. O total de lucros e dividendos distribuídos – incluídas pessoas físicas e jurídicas, exceto as optantes pelo Simples – foi de R$ 436 bilhões no mesmo ano. Se aplicada uma alíquota efetiva de 25% sobre esse montante, o resultado seria uma arrecadação adicional superior a R$ 100 bilhões de imposto de renda
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Quanto à dedução dos “juros sobre capital próprio”, levantamento em 87 empresas com grande volume de ações negociadas mostrou que somente elas pretendiam economizar pouco mais de R$ 25 bilhões pelo uso desse instrumento em 2014. O cálculo aproximado da renúncia fiscal do Tesouro foi de R$ 15 bilhões. Curiosamente, as renúncias fiscais às rendas do capital não são consideradas nos cálculos oficiais sobre as desonerações tributárias.
A justificação do injustificável
Os interessados alegam que a empresa já pagou imposto de renda e não haveria razões para cobrá-lo dos seus sócios e acionistas. Não é bem assim. Na ampla maioria das situações, o valor devido pela pessoa física, sem a isenção, seria muito maior em proporção ao devido pela pessoa jurídica . É possível, até, que haja prejuízo fiscal da pessoa jurídica e distribuição de lucros, uma vez que o critério para tanto é o resultado contábil.
Por essa lógica, não deveria incidir o IR sobre os salários do empregado doméstico, motorista, cuidadora ou enfermeira, quando contratados por uma pessoa física também assalariada, nem sobre o lucro auferido por uma empresa fornecedora de outra, pois a renda do contratante já teria sofrido a incidência. Será que imaginam o IR como um tributo não cumulativo, à semelhança do IPI ou do ICMS, em que se compensa o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores?
Se algo lembra o “patrimonialismo” é a confusão entre a pessoa jurídica e as pessoas físicas de seus sócios ou acionistas. Na economia real e na ordem jurídica, cada qual tem sua autonomia e capacidade contributiva própria. E o imposto de renda é um tributo pessoal. Quanto aos “juros sobre capital próprio”, o argumento mais repetido é que representa um incentivo ao investimento, tese jamais comprovada e, além disso, apresentada com o sinal trocado. O instrumento é um estímulo, isso sim, à distribuição aos sócios e acionistas, não ao reinvestimento na própria empresa.
Países que prezam investimentos ditos produtivos adotam a política contrária: estimulam a capitalização dos lucros. Aqui no Brasil havia uma norma de estímulo à capitalização, que foi atropelada em 1995, na inauguração da reforma do imposto de renda. Como esse mecanismo foi criado em lei ordinária, para a revisão dos benefícios basta outra lei aprovada por maioria simples do Parlamento.
Diante da dimensão do problema, a revisão dos privilégios aos que recebem rendas de capital é uma condição preliminar para que sejamos levados a sério quanto à intenção de construir um sistema tributário que cumpra a função de financiar o Estado de forma justa, equilibrada e transparente, ao mesmo tempo em que, pelo mecanismo da progressividade, seja funcional ao desenvolvimento econômico e social com redistribuição de renda e de riqueza.